Direito de nacionalidade e dupla cidadania

I –– Introdução –– Conceitos

“Quem ama aos seus não degenera” (provérbio popular). Especialmente quem ama a terra dos seus ascendentes! Assim, pode alguém ter duas nacionalidades, uma de sua terra natal e outra daquela de seus antepassados?

De início, há que se entender os conceitos de Estado, país, nação, povo e nacionalidade. Estado é o organismo político–administrativo decorrente da ocupação por um povo de um território, dirigido por governo próprio, com suas leis e sua soberania, constituindo uma nação politicamente organizada e com reconhecimento internacional. País é o território habitado pelo povo de um Estado, com realidades histórica e geográfica próprias, formadoras de uma nação. Por conseguinte, nação é o conjunto de pessoas que habitam o mesmo território, com similitude de hábitos e costumes, ligadas por laços históricos, culturais, linguísticos, raciais, religiosos e econômicos, constituindo um povo –– com direitos e deveres de cidadania –– e sendo parte integrante de um Estado (população é o conjunto de pessoas – nacionais e/ou estrangeiras – residentes num território, com seus dados numéricos e características raciais).

Nacionalidade é termo praticamente sinônimo a cidadania, com significado de vínculo jurídico ligando um indivíduo a um Estado, em razão de local de nascimento, de ascendência ou naturalização, gerando para o nacional deveres e direitos de caráter jurídico e político. Assim vinculado, integrante da nação e do povo, o indivíduo se torna cidadão, no gozo dos seus direitos políticos e participante da vida do Estado.

Com poder soberano, cada Estado legisla com exclusividade sobre a nacionalidade, sem qualquer ingerência estrangeira. A doutrina jurídica distingue duas espécies de nacionalidade: a primária ou originária, resultante do fato natural do nascimento, pelo qual a nacionalidade é conferida segundo critérios territoriais, sanguíneos ou mistos; e a secundária ou adquirida, resultante de vontade própria, após o nascimento, e geralmente pela naturalização.

O art. 12 da Constituição Federal–CF atribui a nacionalidade originária através de dois critérios: “ius soli” (origem territorial), em regra, pelo qual é brasileiro nato o nascido em nosso território, independentemente da nacionalidade do ascendente; e “ius sanguinis” (origem sanguínea), pelo qual é nacional o descendente de brasileiro(a), independentemente do local de nascimento, aplicável com requisitos próprios, identificado o ascendente como brasileiro nato ou naturalizado concomitantemente ao nascimento. A nacionalidade adquirida decorre de ato voluntário de naturalização, permitido ao estrangeiro com outra nacionalidade, ou ao apátrida (sem nenhuma), preenchidos requisitos constitucionais e legais, concessão esta facultativa do Poder Executivo.

Pode haver perda da nacionalidade de brasileiro, por aquisição voluntária de outra nacionalidade. Porém, o mesmo art. 12 da CF, por seu § 4º, inciso II, letra “a”, admite a nacionalidade originária pela lei estrangeira. Nesta hipótese está o cidadão brasileiro que tem reconhecida outra nacionalidade por Estado estrangeiro, em razão do “ius sanguinis”, cujo exemplo mais flagrante é o da Itália, que reconhece expressamente ao descendente de seu nacional o direito à cidadania italiana. Neste caso evidentemente não se trata de naturalização voluntária, e sim mero reconhecimento de nacionalidade originária italiana, por processo administrativo e concessão da autoridade daquele país. Aqui não se há falar em perda da nacionalidade brasileira, e sim em aquisição de outra – a italiana –, passando o cidadão nestas condições a ostentar dupla cidadania!

II – Concessão da Cidadania Italiana – Aspectos Administrativos e Legais
1. Comprovação da Descendência:- Os pretendentes (aqueles interessados de uma mesma família) têm que comprovar que descendem de italiano nato (tataravô, bisavô, avô, pai), inicialmente por um documento básico: a certidão italiana de batismo dele (até 1871) ou de registro de nascimento (após 1871), e/ou sua certidão de casamento (se ocorrido na Itália). Este(s) documento(s) – no original – têm que ter apostilamento (reconhecimento de validade) na Itália, e depois no Brasil têm que ser traduzidos por tradutor juramentado e ser registrados em cartório. E mais: considerando-se que o ascendente italiano veio para o Brasil e aqui gerou filhos, que por sua vez se casaram e geraram filhos, e assim sucessivamente até os pretendentes nascerem, há necessidade de se comprovar genealogicamente todos os registros civis brasileiros do ascendente italiano (casamento/óbito) e dos seus descendentes brasileiros (nascimento/casamento/óbito), até os registros de nascimento e casamento dos próprios pretendentes.

2. Retificação Judicial de Registros Civis Brasileiros
Ao fazer análise prévia da documentação, o advogado (ou analista especializado) pode constatar um erro grave: a grafia do nome do ascendente italiano na sua certidão original italiana de batismo/nascimento (prenomes e especialmente o sobrenome) não confere com a grafia do nome dele nos registros civis brasileiros (as grafias têm que ser idênticas!). Então tem que haver o processo judicial de retificação de registros civis (cf. art. 109, caput – Lei dos Registros Públicos – nº 6.015/1973), pelo qual os interessados requerem que o nome/sobrenome do ascendente italiano (e eventuais outros erros referentes a nomes de pessoas e localidades, datas, idades, números, etc) sejam retificados, passando a constar corretamente dos registros civis brasileiros de seus descendentes, e assim integrar toda a documentação a ser posteriormente encaminhada à autoridade italiana. Este processo deve ser proposto na Comarca dos Requerentes (ou de sua maioria), é rápido (geralmente tramita apenas em 1ª Instância, em poucos meses) e termina com a Sentença transitada em julgado, determinando aos correspondentes Cartórios de Registros Civis os devidos cumprimentos dos mandados judiciais retificatórios, aí sendo expedidas novas certidões retificadas (o que também se faz com presteza). Terminada esta etapa preliminar – preparatória e importantíssima – a documentação familiar está apta para embasar o requerimento administrativo da Cidadania Italiana.

3. Processo Administrativo –– Requerimento
De posse de toda a documentação (novas certidões retificadas, apostiladas e vertidas para o idioma italiano por tradutor juramentado), os postulantes têm dois caminhos para requerer a Cidadania Italiana:- a) Consulado Italiano de sua região no Brasil (longo processamento); b) diretamente na Itália (breve processamento, porém tendo que escolher uma cidade italiana para efetuar o processo de Cidadania e nela residir até a concessão). Em cada situação, indicamos as pessoas e/ou entidades competentes para orientar e dar suporte nesta parte final.

III –– Recentes Limitações à Concessão de Cidadania via “ius sanguinis”

Até recentemente, a concessão de Cidadania Italiana via “ius sanguinis” era concernente às condições e situações anteriormente expostas no texto acima, podendo ser amplamente concedida aos descendentes de italianos natos, nascidos no exterior e espalhados pelo mundo afora –– abrangendo filhos, netos, bisnetos, trinetos, etc, sem limites de gerações entre os descendentes dos ascendentes! Então, com o passar do tempo, tal largueza procedimental foi produzindo fatores negativos, até mesmo em contrariedade aos princípios magnânimos originários da concessão da cidadania “ius sanguinis”. Vejamos, pois, tais fatores negativos:-
a) Enorme procura da Cidadania Italiana por descendentes em todo o mundo (especialmente no Brasil), gerando longuíssimas filas e atrasos nos Consulados, com aumento constante do número ilimitado de pretendentes; b) Utilização do processamento da Cidadania Italiana de forma abusiva e/ou fraudulenta (com apresentação de documentos falsos e adulterados); c) Constatação de que os novos adquirentes da Cidadania Italiana – com raríssimas exceções – sequer sabem falar o idioma italiano, quase nada sabem da realidade da Itália (país, povo, situação social, econômica, política, etc); porém, ao adquirir a Cidadania, se tornam eleitores, com direito e dever de “votar”, em situações e épocas que ignoram completamente e que não vivenciam, e assim nada têm para oferecer!… d) Necessidade premente de redução do fluxo migratório, não só na Itália como em diversos países da Europa, que também adotam o “ius sanguinis” para concessão de cidadania (Portugal, Espanha, França, Alemanha, Inglaterra e Holanda), em razão de fluxos incessantes de cidadãos de outros continentes.

Em razão de fatores similares, Portugal editou a nova Lei Orgânica nº 2 – Novembro/2020 (restringindo a concessão até os netos de ascendentes – com possibilidade de extensão sequencial a bisnetos –, mais a exigência de domínio da língua portuguesa). Por sua vez a Itália encetou uma reação mais enérgica, editando uma nova legislação (Decreto-Lei de 28/03/2025, seguida da Lei nº 74 – 23/05/2025), limitando a concessão da Cidadania até os netos, excluindo os bisnetos e os outros descendentes mais abaixo nascidos no exterior. A principal alteração está em que a cidadania por descendência não será mais reconhecida sem limite de gerações, passando doravante a ser concedida só para 0 1º e 2º graus de descendentes, ou seja: apenas para os filhos e os netos do ascendente –– italiano nascido na Itália! Mais ainda: filhos de italianos nascidos no exterior só terão direito à cidadania apenas se o pai ou mãe italiano tiver residido na Itália por pelo menos dois anos consecutivos antes do nascimento (os cônjuges têm direito, mas com comprovação de domínio da língua italiana).

Milhares de brasileiros descendentes de italianos, especialmente aqueles cujos antepassados chegaram ao Brasil entre os anos de 1890 até 1910, podem perder o direito à Cidadania Italiana (certamente bisnetos e trinetos). Todavia, as novas regras não se aplicam àqueles que já foram reconhecidos como cidadãos italianos pela legislação anterior, e bem assim não são aplicáveis aos requerentes dos processos em curso, iniciados antes da promulgação das novas normas legais (princípio da irretroatividade legal). Outrossim, a nova lei está sendo contestada por possíveis inconstitucionalidades, podendo sofrer alterações.

In fine:- Nacionalidade e Cidadania são termos que envolvem sinonímia entre si, com significado de participação do indivíduo na sociedade da nação, com relação aos seus direitos –– políticos, civis e sociais, e a direitos fundamentais como liberdade de expressão, igualdade perante a Lei, acesso à Justiça e a serviços básicos ––, e bem assim com relação aos seus deveres –– respeito às leis, ao meio ambiente e às autoridades, cuidados com o bem comum e participação no meio social. Enfim, Cidadania – com direitos e deveres – é via de mão dupla!

Destarte, e sem trocadilhos –– com uma única ou com dupla cidadania ––, o que releva é que sejamos bons cidadãos, usufruindo honestamente dos nossos direitos e cumprindo corretamente os nossos deveres, como quer que sejamos e onde quer que estejamos!

Se o caro leitor ama a terra dos seus antepassados, se enquadra com o tema deste texto e quer saber mais, saiba que sempre haverá um Advogado especializado à sua disposição!

“A cidadania é o exercício da democracia; a participação é o instrumento da cidadania”.
–– João Simas ––

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