Com o desenvolvimento da sociedade, a automação e a industrialização se consolidaram como realidades inexoráveis, ultrapassando as barreiras da produção nas indústrias e alcançando o nível comum do dia a dia de todos. Por mais complexo que esse fenômeno possa se apresentar, sua assimilação ocorreu de maneira assustadoramente simples.

Basta observar, não há um dia em que não mantemos contato com algum sistema operacional que não nos traga as mais diversas facilidades, desde operações financeiras por máquinas de cartão à tarefas domésticas realizadas autonomamente por dispositivos pré-programados. Ocorre que, ainda assim, por mais natural que seja essa realidade, não percebemos os entraves que pode nos causar, no sentido de entendê-la não mais como mera ferramenta, mas como elemento que se desenvolveu ao ponto de nos substituir nas mais diversas tarefas – por enquanto, ainda de caráter mais simples.

No mundo jurídico não foi diferente.

Nosso legislador, corriqueiramente desatualizado e corriqueiramente mau observador das diversas áreas do Direito, não acompanha o avanço galopante da tecnologia, por exemplo, na controversa definição jurídica da figura do software.

Um exemplo deste embate se vê na área Tributária, a qual viu esta revolução substituir uma massa enorme de atividades (serviços) e mão de obra – ambas objeto de tributação, rotineiramente –, a ponto de se fazer questionar como um software de fato funciona e como defini-lo juridicamente, ou seja, a dita natureza jurídica desse novo elemento socioeconômico para, então, poder pensar em sua tributação.

Já no ano de 1998, nosso Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário n. 176.626-3, São Paulo) tentou formular critérios de distinção entre tipos diferentes de software, a depender de suas funções e grau de personalização, no intuito de melhor discernir a partir daí como nosso ordenamento encaixaria a aplicação de cada tributo para cada “tipo” de software e encerrar a discussão, que se arrasta até hoje, quanto à tributação de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) ou Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN).

Dentre outros embates quanto à aplicação de outros tributos, esse, talvez, é um dos mais interessantes. A questão de fundo é: um software é um produto (mercadoria) ou um serviço, representando uma utilidade prestada a outro indivíduo, ainda que de caráter imaterial?

Distinguir esse ponto parece ser um dos primeiros passos para começar a entender a tributação incidente: ao considerar esse sistema operacional uma mercadoria, tem-se, a princípio e simplificadamente, a aplicação de ICMS; se tratarmos como uma prestação de serviço, aplicar-se-ia (novamente de forma simplista) o ISSQN.

No referido julgado, o STF estabeleceu distinções de classificação dos softwares, entre os softwares de prateleira (ou of the shelf) e os softwares por encomenda, demonstrando – ainda que naquele momento não se percebesse – o descompasso de conhecimento da nossa Suprema Corte com esta nova realidade tecnológica.

Em tese o software de prateleira seria aquele em que já existe suporte físico, um corpus mechanicum, ou seja, um elemento físico que possibilita sua compra em lojas, pronto para uso, sem a possibilidade de alteração em sua estrutura ou customização detalhadas pelo cliente.

O software por encomenda, por sua vez, consistiria naquele em que um indivíduo passaria, enquanto cliente, orientações a um produtor/programador para o desenvolvimento de um determinado tipo de programa que atenda às suas necessidades e possua funções específicas, estando, neste caso, diante da produção de um software que serviria apenas àquele determinado cliente, portanto, um serviço que lhe foi prestado.

Desmontando a distinção do STF, surgiu como conduta mais comum os Softwares as a Service (SaaS), ou seja, aqueles que permitem ao usuário o acesso a programas disponíveis na internet, como o Netflix ou o Spotify. Em nenhum dos dois casos, compramos ou encomendamos o software, mas sim acessamos sua base de dados por meio do que se convencionou chamar de “nuvem”, utilizando um determinado login e senha, de maneira que também não nos apropriamos (juridicamente falando) de seu conteúdo, perdendo acesso a ele assim que resolvido o contrato com tais empresas.

O surgimento do SaaS é talvez o que tenham feito surgir mais discussões no âmbito acadêmico.

Afinal, em um mercado que “suporte físico” e download se tornam cada vez mais ultrapassados, e a autorização de acesso tornou-se realidade, teria a incidência do ICMS desaparecido do mercado de softwares? Teria essa incidência sequer existido de fato?

Muito embora boa parte da doutrina e jurisprudência entendam que o suporte físico é necessário para cobrança do ICMS, há quem argumente em sentido diverso sob a alegação (dentre outras) de que, no caso dos softwares, nunca existiu um corpus mechanicum que se confundisse com o sistema operacional em si, posto que um software é e sempre foi uma sequência de instruções em linguagem de programação para serem interpretadas por um computador, ou seja, sempre foi intrinsecamente digital e intangível!

Nesse contexto, infindáveis discussões são travadas entre aqueles que defendem a não tributação do ICMS sobre os softwares e aqueles que defendem a sua incidência, defendendo estes últimos que, com a evolução da nossa sociedade, os conceitos jurídicos, dentre eles o de mercadoria, também evoluiriam para se desprender da noção de existência física, passando a abrangem o mundo virtual.

Isso sem nem sequer entrar no debate: SaaS consiste em uma prestação de serviço a final? Ou deve ser visto com um produto, a luz desta evolução dos conceitos?

Tornando ainda mais confusa a questão, já se apresentam defensores de uma nova Emenda Constitucional com instituição de novas espécies tributárias para incidir sobre esses bens, entendendo que nenhum dos tributos atuais tem suporte fático suficiente para atingi-las

De fato, ao considerarmos que os Softwares as a Service não constitui serviço prestado, mas sim uma disponibilização de uma determinada utilidade em plataforma online, pode ser difícil o enquadramento para efeitos de incidência de ISSQN; porém, se focarmos no trabalho humano de programação por trás dessa disponibilização de dados, a incidência do ISSQN pode se mostrar mais acertada.

Fato é que nem a academia, nem nossos tribunais e muito menos nossas leis, têm acompanhado o ritmo de desenvolvimento tecnológico do mercado digital, o que gera cada vez mais insegurança e incerteza frente ao assunto, sempre, porém, por parte do contribuinte nesses tipos de situação, ou seja, as empresas de Softwares.

O futuro, neste aspecto, já está traçado: os softwares – sejam eles bens, serviços ou algo ainda a ser definido tributariamente – vieram para ficar e esse assunto não pode, e cada vez mais não poderá, ser ignorado, sob pena de expulsarmos investimentos do país a longo prazo.

A questão que se coloca agora, talvez mais do que nunca, é: o que fazer com o mundo digital, universo que há tempos deixou de se adaptar à nossas necessidades e hoje exige que nos adaptemos às dele? Persistirá o Direito a ignorá-lo ou, finalmente, abraçá-lo-á?

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