Dispõe o artigo 50 do Código Civil Brasileiro – 2002 :- Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio da finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

 

Anteriormente, já dispusera o art. 28 da Lei nº 8.078/90 – “Código de Defesa do Consumidor” :- O juiz poderá desconsiderar a pessoa jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Proveniente do direito anglo-saxão, a “Disregard Doctrine”foi introduzida no direito pátrio em meados da segunda metade do século passado. Entre nós, o primeiro jurista a abordar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi RUBENS REQUIÃO, que a introduziu no encerramento de uma conferência realizada em 1969, com uma claríssima advertência:

“Quando propugnamos pela divulgação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica em nosso direito, o fazemos invocando aquelas mesmas cautelas e zelos que revestem os juízes norte-americanos, pois sua aplicação há de ser feita com extremos cuidados, e apenas em casos excepcionais, que visem impedir a fraude ou o abuso de direito em vias de comunicação.” –– (“Aspectos Modernos de Direito Comercial”, São Paulo, Saraiva, 1997, vol. 1, págs. 83-84).

Portanto, a desconsideração deve ser sempre a exceção, não a regra.

Desta forma temos como pressuposto incontornável para a aplicação da aludida teoria a manipulação fraudulenta ou abusiva da autonomia patrimonial –– caracterizada pela não confusão da pessoa jurídica com as pessoas que a integram –– , conforme regra contida no artigo 20 do anterior Código Civil – 1916 (“As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”). Contudo, o princípio da autonomia patrimonial não é absoluto, existindo exceções ao mesmo, justamente nas hipóteses de fraude ou abusos de direito perpetrados por meio do instituto da separação patrimonial. A disregard doctrine visa justamente coibir as fraudes e abusos, viabilizados através do mau uso da regra da separação patrimonial.

A orientação dos nossos tribunais reza no sentido convergente com o acima exposto:

Diante de abusos de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, pode o juiz desconsiderar tal personalidade para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que nele se escondem para aqueles fins”.

(Tribunal de Justiça de São Paulo, relator Des. Munhoz Soares, Jurisp. do Trib. de Justiça – LEX, vol. 147, pág. 196).

“SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA – Desconsideração da personalidade jurídica – Teoria que busca atingir a responsabilidade dos sócios por atos de malícia e prejuízo – Aplicabilidade quando a sociedade acoberta a figura do sócio e torna-se instrumento de fraude. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou doutrina da penetração, busca atingir a responsabilidade dos sócios por atos de malícia ou prejuízo. A jurisprudência aplica essa teoria quando a sociedade acoberta a figura do sócio e torna-se instrumento de fraude. A fraude não se presume”. [ = grifo nosso = ]

(1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, relator Dr. Octaviano Santos Lobo, RT 708/116).

Fundamentalmente, pois, há que se demonstrar e provar que os diretores da empresa objeto da desconsideração da personalidade jurídica agiram de forma abusiva ou fraudulenta. Assim, é de suma importância não confundir a eventual má gestão técnica de funcionários com os pressupostos exigidos para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (fraude ou abuso de direito).

Destarte, esta deve ser aplicada de forma cautelosa e sob caráter excepcional. O instituto em causa, ao ser aplicado, pode produzir efeitos que contradigam os valores conforme os quais se modelou e assentou a ordem jurídica, comprometendo a certeza e a segurança jurídica do direito. Caso contrário, corremos o risco de assistir a um cenário de banalização da aplicação da disregard doctrine, transformando a exceção em regra !

Se uma pessoa jurídica não foi utilizada para fins diversos ao objeto para a qual foi criada, e não foram praticados atos ilícitos, fraudulentos ou abusivos pelos seus diretores, uma eventual má gerência técnica não pode ser fundida com o cometimento de atos fraudulentos ou ilícitos, misturando duas realidades totalmente distintas, perfeitamente separadas e com consequências completamente desiguais ! Dificuldades de ordem econômico-financeira de uma empresa não evidenciam comportamento ilícito ou desvio da finalidade que possam justificar a desconsideração de sua personalidade jurídica! Confiram-se:

“Sociedade por cotas de responsabilidade limitada – Desconsideração da personalidade jurídica – Aplicação que requer cautela e zelo, sob pena de destruir o instituto da pessoa jurídica e olvidar os incontestáveis direitos da pessoa física – Necessidade que seja apoiada em fatos concretos que demonstrem o desvio da finalidade social da sociedade, com proveito ilícito dos sócios.

…. A aplicação da ‘disregard doctrine’, a par de ser salutar meio para evitar a fraude via utilização da personalidade jurídica, há de ser aplicada com cautela e zelo, sob pena de destruir o instituto da pessoa jurídica e olvidar os incontestáveis direitos da pessoa física. Sua aplicação terá de ser apoiada em fatos concretos que demonstrem o desvio da finalidade social da pessoa jurídica, com proveito ilícito dos sócios”. –– grifo nosso ––

(TAPR, 2ª Câm., Ap. 529/90, rel. Juiz Nei Carneiro Leal, RT, 673/160)

“Percalços econômico-financeiros da empresa, tão comuns na atualidade, mesmo que decorrentes da incapacidade administrativa de seus dirigentes, não se consubstanciam, por si sós, em comportamento ilícito e desvio de finalidade da entidade jurídica.

Do contrário seria banir completamente o instituto da pessoa jurídica”. –– grifo nosso ––

(1º TACSP, 3ª C6am., Ap. 507.880-6, rel. Juiz Ferraz Nogueira, 15-9-1992, RT, 690/103) -.-

Portanto, sem a presença dos pressupostos de fraude ou ato abusivo, com comprovação pelo devido processo legal, a regra do artigo 20 do anterior Código Civil–1916 (“As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”) deve ter vigência, não podendo o Judiciário deixar de lhe conferir plena eficácia.

In fine: a teoria da desconsideração da personalidade jurídica deve incidir somente com total e especial fundamentação, que justifique a sua aplicação –– que deve ser sempre em caráter excepcional . Se assim não for, em muitos casos pode ocorrer o cerceamento dos direitos individuais dos representantes da pessoa jurídica alvo da desconsideração, constitucionalmente assegurados entre os incisos do artigo 5º da Carta Magna, tais como: a garantia ao contraditório, a plenitude do direito de defesa e a fundamentação das decisões judiciais. Pode-se mesmo afirmar que meros despachos, determinando a penhora de bens dos sócios –– como sói acontecer em muitos processos judiciais contra sociedades –– , importam em flagrante desobediência ao direito constitucional do devido processo legal.

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