(Ou da necessidade de se ouvir o profissional)

Não é raro – e, pelos clientes, muitas vezes é apreciadíssimo – o advogado que assume um caso como se fosse ele o detentor do direito.

Não estou falando da defesa aguerrida, de comprometimento com a causa, de zelo profissional. Falo daqueles que, por motivos de foro íntimo, ultrapassam a barreira da imparcialidade e esquecem que, antes de tudo, existe uma técnica, uma norma, uma regra que deve ser seguida.

Isso até poderia ser irrelevante enquanto o direito só existia nos livros, sob cânones e expressões apenas lidas e interpretadas por poucos. Hoje, com a internet – e a inteligência artificial batendo às portas das bancas jurídicas –, essa imparcialidade profissional torna-se, além de essencial, um diferencial.

Dou um exemplo: há cerca de um ano procurou-me um colega querendo indicar um cliente. Problemas com a matrícula na faculdade. Meu primeiro instinto foi de recusar o caso – acreditava que o vestibular, pelo menos ele, era suficientemente regrado e ordenado para tornar desinteressante o caso –; entretanto, após ouvir a situação, percebi que estava equivocado.

Eis o cerne do problema: a Universidade havia, por liberalidade, anulado a matrícula feita, dizendo que ela – UNIVERSIDADE – havia errado ao aceitar aquela inscrição.

De fato, houve um erro na efetivação daquela matrícula, mas o contrato havia sido assinado pelas partes, o primeiro pagamento feito e, pasmem, até certidão de matrícula foi emitida. Até a sala e o bloco onde as aulas aconteceriam foi informado!

Ainda assim, a Universidade queria cancelar aquela matrícula e, por melhor que tenha sido o seu atendimento, não houve acordo.

Bate-se a porta do Judiciário já as vésperas do início das aulas. Diante da urgência, a manutenção da matrícula feita é confirmada por liminar, garantindo que o aluno/cliente inicie o ano letivo. Apresenta-se a defesa, marca-se a audiência de instrução.

Ouvida a testemunha indicada pela Universidade essa reconhece que quem errou foi a Universidade. O Juiz, prudentemente, insiste em tentar um acordo – afinal, o ano letivo já se iniciou, não há mais tempo para novas chamadas de candidatos, as mensalidades estão sendo pagas e as matérias aprendidas –.

Infelizmente, sem acordo pois, segundo a Universidade, este era um caso “gravíssimo” que jamais seria admitido por ela.

Obviamente, a sentença foi favorável ao cliente, confirmando a matrícula e o contrato firmado.

Houve recurso – afinal, como não recorrer de uma decisão como essas?

E, se o caso era gravíssimo, agora a decisão tornou-o ainda mais, eis que, diversamente da polidez do Juiz, o Tribunal de Justiça não teve dedos ao afirmar que se não fosse a dupla falha da ré, em demonstração de desorganização incompatível com a [sua] importância e tradição1, o meu cliente teria perdido a vaga. E, como se quisesse lançar o último cravo no caixão, ainda conclui: aperfeiçoado o contrato, não se vislumbra nulidade. Reconhecê-la seria convalidar a invocação, por parte da requerida, de sua própria torpeza.

Não tenho dúvidas que o profissional – e demais que formam o corpo jurídico daquela instituição – certamente alertou a Universidade que eles haviam errado e que isso, dificilmente, escaparia dos olhos do Judiciário; ouso até dizer que foi repreendido por esse alerta, pois como o advogado ousa falar contra o seu cliente?

Como não abraçar, com ferrenho amor, aquela causa ainda que perdida que, não poucas vezes com desdém de quem acha estar fazendo um favor, lançam-lhe no colo?

Ousa-se, pois, é necessário; ousa-se para ser imparcial; ousa-se para dar o melhor atendimento e orientação àquele que nos depositou sua fé e confiança.

São essas ousadias que nos diferencia das máquinas; que não permite que o direito se torne uma commodity, tornando a história, a preparação e a cultura do advogado tão essencial à profissão.

É isso que diferencia o trabalho do advogado: saber dizer que seu cliente está errado, não por que quer-lhe confrontar, mas sim para protegê-lo, ajudá-lo a minimizar os impactos que aquele erro pode lhe trazer.

E se o cliente decide por outro profissional ao ouvir isso, bom, talvez você tenha feito a melhor escolha a ele e não o contrário.

  1. Para preservar o sigilo profissional, deixo de referenciar o julgado em questão. ↩︎
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