Não, caríssimo leitor, seu celular Apple não (deve…) virar um moderníssimo e caro peso de papel, mas certamente a (esperada) chegada dos novos modelos desse ícone do consumo e da cultura conectada pode se tornar uma aventura neste ano.
Ao usuário – especialmente aquele que já está habituado às controvertidas decisões da Apple –, muito dessa discussão fica parecendo uma guerra de vaidades ou mesmo ficar sem qualquer sentido.
Afinal, quem hoje não tem um carregador, ou uma porta USB sobrando em casa ou no trabalho, que possa ser utilizado no seu novíssimo aparelho celular? Quantos outros produtos – os próprios fones de ouvido sem fio, para citar um único exemplo – não compramos que não vêm com o carregador, exatamente por ser carregável por uma porta USB?
Ou, como bem me lembrou um colega, há quantos anos os móveis comprados não vêm desmontados e sem sequer as ferramentas para sua montagem, com uma proposta na própria loja para contratação de um montador… Isso não é venda casada?
Certamente veremos diversas reportagens, artigos e especialistas explicando tanto as razões para ter sido tomada esta decisão, e por qual razão a “Grande Maçã” está certa e o Governo Brasileiro errado nessa disputa!
De forma simples? A discussão é muito mais de como realizamos o nosso consumo – e como as empresas devem se portar nesse processo – do que sobre aquele quadradinho branco que vinha junto do aparelho.
Os argumentos jurídicos da decisão tomada[i] são, formalmente, tão convincentes quanto as razões da Apple para retirar o referido item do produto: segundo a decisão, qualquer celular, para ser usado, precisa ser recorrentemente carregado; e, ao vender o Iphone sem o carregador, estaria a Apple vendendo um produto incompleto e realizando venda casada – pois o consumidor precisaria comprar o carregador à parte (se já não tiver um, claro).
Em contrapartida, a Apple baseia-se numa política global pró meio-ambiente (e de padronização do seu produto), visando a redução do lixo eletrônico[ii] para retirar o referido item de seus produtos, considerando que o mercado consumidor já está maduro o suficiente para que esse item se torne desnecessário, já que todos têm ou um carregador em sua posse ou outros meios de realizar essa recarga.
Não tenho dúvidas que esse embate ainda durará por bastante tempo e desaguará no Judiciário – afinal, não é só a Apple que tomou essa atitude, e certamente não será a última. Menos dúvida ainda tenho que, ainda que atrase, o Iphone continuará sendo vendido e funcionando no país sem maiores problemas.
Mais que um embate de princípios e direitos – proteção do consumidor versus proteção do meio ambiente –, esta decisão mostra quão complexa é a interpretação do direito diante da veloz mudança das realidades e operações de consumo, hoje definidas em âmbito global, e não mais por regiões ou países, salvo raríssimas exceções.
Realmente, é difícil conceber que um usuário – que se disponha a comprar um aparelho celular cujo custo, hoje, facilmente iguala-se ou até mesmo supera a renda anual média brasileira –, não tenha um carregador USB, tornando–se não equivocada, mas frágil a tese de que a Apple estaria violando os direitos básicos do consumidor ou buscando aferir um benefício comercial ilegal (venda casada), ao retirar esse item dos produtos.
Mas quem vai definir o que é essencial ou acessório, e quais os padrões que devem ser observados num produto colocado para consumo?
Este parece ser o real embate nesse processo e discussão sobre ter ou não carregadores nos celulares: a quem compete e competirá definir esses padrões do que deve ou não ser essencial ao consumidor?
Seria o carregador ou a informação clara do que está sendo oferecido?
E, nesse descompasso entre o que se entende como direito – do consumidor ou de qualquer pessoa – e aquilo que, na prática, acontece nas relações comerciais, cria-se mais um “custo Brasil” a ser administrado pelas empresas: o risco de serem penalizadas por evoluir conforme o mercado consumidor – e mundial – evolui, resultando numa insegurança jurídica enorme, onde ora estar-se-á obrigado a fornecer (e indenizar) o carregador, ora fica evidente e bem informada a falta desse acessório no produto colocado no mercado de consumo.
Ao mundo jurídico, ficam a espera pelos próximos capítulos deste embate e a desafiadora missão de tentar traduzir aos seus clientes o impacto desta decisão na sua rotina.
Até lá, fica a dúvida! E você, consumidor, que nem foi ouvido nessa discussão, sentiu falta do carregador?…
[i] Disponível em https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=06/09/2022&jornal=515&pagina=68&totalArquivos=131
[ii] Para entender o impacto dessa questão, recomendo a leitura deste texto –https://news.un.org/pt/story/2022/01/1777952
Advogado sócio da Advocacia Hamilton de Oliveira. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-CAMPINAS). Formado em Processamento de Dados e Mecatrônica pelo Colégio Sagrado Coração de Jesus.
Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Gestão Estratégica na Advocacia pela Escola Paulista de Direito (EPD). Relator da 17ª Turma Disciplinar do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados Subseção de Campinas (OAB Campinas – Gestão 2019 – até a presente data). Vice-Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da Ordem dos Advogados Subseção de Campinas (OAB Campinas – Gestão 2019-2021). Presidente da Comissão de Direito Contratual da Ordem dos Advogados Subseção de Campinas (OAB Campinas – Gestão 2022-2024).
Tem dedicado sua prática à área do Direito Civil, Empresarial e Contratual.