Na última quarta-feira, dia 16 de setembro de 2020, houve uma nova manifestação dos entregadores por aplicativo em 14 Estados brasileiros. Entre os principais pedidos está o de melhores condições de trabalho e aumento do repasse das tarifas, sendo este movimento o terceiro ocorrido apenas neste ano.

A manifestação também busca a aprovação do Projeto de Lei 1665/20, que prevê seguro contra acidentes e doenças contagiosas, fornecimento de equipamentos de proteção individual, assistência em caso de contaminação por Covid-19, além do vínculo empregatício com as plataformas.

Não é surpresa para ninguém que, com a chegada da pandemia, a demanda de entregas de refeições, compras de supermercado e inclusive medicamentos, realizadas principalmente por motoqueiros e ciclistas, aumentou exponencialmente. Com este aumento, também houve a exposição da dura realidade enfrentada por estes entregadores, que se submetem a jornadas extenuantes de trabalho, com remunerações que mal alcançam a casa do piso mínimo brasileiro. Atuando como motofrentista desde 2014, Rosalvo Brito de Fonte relata que chega a trabalhar até 16 horas por dia, para apenas receber o equivalente a R$800,00 por semana.

Tidas como as maiores “empregadoras” do País, empresas como Ifood, Rappi e Uber acumulam cada vez mais cadastros de desempregados, que são atraídos pela certeza de serviço imediato e da grande demanda, independente da remuneração final. O contexto gerado pela já existente crise econômica brasileira, agravada pela pandemia do novo coronavírus, não poderia ser outro além da total precarização do trabalho destes entregadores, caracterizado por uma rotina repleta de perigos e sacrifícios e pouco ganho.

Apenas em 2019, aproximadamente 5,5 milhões de brasileiros atuavam como entregadores, representando 23% dos profissionais autônomos do país. Durante os primeiros meses de quarentena, entre março e abril de 2020, as compras por aplicativo aumentaram 30% em relação ao ano anterior, sendo que o lucro obtido pelos motoqueiros com entregas foi surpreendentemente baixo, tendo em vista dificuldades impostas pelas plataformas, seja nos valores de repasse, seja na baixa cobrança pelas corridas.

Segundo uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 68,9% dos entregadores tiveram quedas em seus rendimentos com a chegada da pandemia. Lauanda de Lima, 27 anos, perdeu seu emprego em uma empresa de marketing durante a pandemia, e não viu outra opção a não ser a de começar a trabalhar como entregadora. Entre todas as dificuldades enfrentadas, relata o baixo incentivo: “Tem muita mão de obra, e as empresas estão diminuindo as taxas. Querem pagar 13 reais para um percurso de 18 km. Isso não cobre nem a gasolina”.

Para tentar driblar o baixo rendimento, os entregadores buscam realizar o máximo possível de entregas durante os períodos considerados como de “pico” (horários de almoço/jantar, por exemplo), transitando acima do limite de velocidade, ultrapassando faróis vermelhos, por vezes cortando caminho pela calçada ou pela contramão, estando inúmeras vezes envolvidos em graves acidentes, representando verdadeiros riscos para sua saúde e dos demais cidadãos que cruzam seus caminhos.

Não apenas os motoqueiros estão inseridos neste cenário precário, mas também os ciclistas. O número de menores de idade trabalhando sobre rodas é alarmante, tendo em vista a facilidade para fraudar as informações no momento do cadastro. O adolescente W.B. informa que com 16 anos começou a realizar entregas com sua bicicleta, utilizando o documento de seu primo para se cadastrar no sistema como entregador. A justificativa utilizada é simples: “Sou agilizado, não posso ficar parado sem receber, entendeu?” Não há até o momento um registro oficial do número de entregadores que utilizam as bicicletas em São Paulo, sendo tal informação negada pelos aplicativos, sob fundamento de serem “números estratégicos”.

Não é difícil deduzir que os maiores medos que norteiam a mente destes trabalhadores têm relação com acidentes e invalidez, não apenas pelo dano físico, mas também pelo fato de que, se não realizarem entregas, não recebem absolutamente nada para seu sustento. Questionado, o mencionado jovem W.B. constata: “Eu sei que se acontecer alguma coisa, estou por minha conta”.

Enquanto muito se discute sobre os direitos desta categoria, sobre as possibilidades ou não de vínculo empregatício com as plataformas, sobre a teoria do risco e a responsabilidade civil dos aplicativos de entregas, é necessário também realizarmos uma reflexão acerca deste modelo de trabalho tão crescente e estimulado, não apenas no Brasil, mas no mundo. Segundo o estudo “Condições de Trabalho de Entregadores via plataforma digital durante a Covid-19”, realizado pelo Ministério Público do Trabalho, pela Unicamp e pela Universidade Federal do Paraná, as plataformas Ifood, Uber Eats, Rappi e Loggi são totais detentoras do poder de definir o valor do trabalho dos entregadores, diminuindo cada vez mais o lucro repassado ao trabalhador, tendo em vista a concorrência que enfrentam entre si. Na medida em que crescem os cupons de desconto, ofertas de entregas grátis e oferecimentos de cashback, aumenta a informalidade das atividades do entregador e diminuem suas já quase inexistentes garantias.

Outro fator revoltante, sobre as diretrizes tomadas por estas empresas, é o incentivo ao trabalho em momentos que representem risco à integridade física do entregador ou que coincidam com dias de descanso – corridas realizadas em períodos chuvosos ou durante feriados geralmente são mais remuneradas. Segundo o sociólogo Henrique José Domiciano Amorim, da Universidade Federal de São Paulo, “As plataformas digitais trabalham com esse cenário de desigualdade social brasileira e faturam em cima dele”.

O que buscamos aqui não é a discussão sobre a existência ou não de vínculo empregatício do entregador com a plataforma – situação semelhante à qual o TST recentemente se manifestou sobre os motoristas de Uber – , mas sim uma análise mais profunda sobre as condições de trabalho vivenciadas pelos entregadores, sejam eles motoqueiros ou ciclistas, trazendo a atenção das mencionadas startups para o modelo de trabalho que elas criaram e vêm incentivando.

As condições mínimas de qualquer trabalhador, garantidas pela nossa Constituição Federal, em seu artigo 7º, inciso XXXIV, não são respeitadas no cenário atual descrito:

Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XXXIV – igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso.

Portanto, que possamos compreender a profundidade da luta desta classe, não apenas por condições mais dignas de trabalho, pelo repasse mais justo de suas entregas, por mais suporte dos aplicativos na preservação da saúde de seus colaboradores e no auxílio em casos de acidentes, mas também pela luta de direitos fundamentais, inerentes à condição humana. E, principalmente, que não assimilemos esta precarização do modo de trabalho como mais uma parte integrante do chamado “novo normal”!

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