Era uma vez um país de dimensões continentais com inúmeros tribunais de justiça, outros tantos tribunais do trabalho, outros tantos tribunais federais, militar e 3 tribunais superiores.

Dos tribunais superiores, todos com sede na capital, um deles tratava somente de matérias voltadas as relações de trabalho e emprego, o outro era voltado a unificar o entendimento nacional de matérias infra constitucionais e o terceiro, a corte suprema, tratava somente de questões constitucionais. Todos os tribunais superiores sempre sentiram o peso de uma grande nação e um sistema jurídico com tradição romana. Teoricamente todas as demandas entradas nas instâncias ordinárias teriam o potencial de alcançar um, dois ou os três tribunais superiores, dependendo da matéria tratada, eis que a constituição daquela nação garantia ao cidadão o duplo grau de jurisdição. Ao longo dos anos esses tribunais superiores, cientes do colapso da sua estrutura em enfrentar a enorme quantidade de demandas que lá chegavam diariamente, foram criando mecanismos a dificultar o seu acesso. Esses mecanismos foram sendo criativamente aprimorados ao longo dos anos que aquela então dificuldade acabou virando um verdadeiro impedimento. Tome-se como exemplo aquele tribunal criado com a nobre missão de pacificar o entendimento nacional de matérias infra constitucionais e evitar o conflito de decisões sobre um mesmo tema. Essa corte, instalada em suntuoso palácio na capital federal, deveria receber, em tese, todas as demandas em tramitação nos tribunais estaduais e federais. Em informal acerto com as instâncias inferiores combinou-se que nenhum recurso voltado àquela corte superior seria admitido na origem, pelo menos em regra. Para tanto bolaram uma decisão denegatória tipo “one size fits all”. Quem tivesse realmente interesse em acessar a corte superior deveria insistir, e bastante. A fim de evitar o cerceamento no direito de defesa, aos recursos não admitidos caberia a parte fazer uso de outro recurso com o objetivo de destrancar o primeiro. Seria o recurso do recurso. Porém de nada adiantava eis que o recurso do recurso era sempre indeferido através de outra decisão “one size fits all”. Diz a lenda que alguns recursos dito especiais passavam direto pelo crivo fino da peneira e chegavam àquela corte superior, talvez pela matéria tratada, talvez pela qualidade do trabalho, talvez pelo descuido dos guardiões. Esses casos eram motivo de intensas comemorações entre profissionais daquele país dotado de capacidade postulatória. Para os jurisdicionados eles não faziam mais que a obrigação. Passada a ressaca da admissibilidade, o profissional começava a se preparar para o julgamento. Sem saber exatamente quando o recurso seria incluído em pauta ele tinha o dever de acompanhar o processo semanalmente e, ao sinal de uma simples movimentação, iniciar os procedimentos para o binômio entrega-de-memorial/sustentação-oral. E tudo tinha que ser milimetricamente planejado eis que para a entrega do memorial o profissional deveria agendar um horário com o julgador, preparar o discurso e comprar a passagem para a capital federal para o dia marcado. Acontece que o julgador só marcava horário para receber os profissionais de fora da capital nos dias ímpares, nas horas pares, e desde que o tempo não estivesse fechado e a temperatura amena. A um simples sinal de chuva, ou de muito calor, tudo estava cancelado e deveria ser remarcado. Se a visita não fosse previamente agendada o profissional com capacidade postulatória até poderia tentar a sorte e ser atendido pelo julgador entre os dez primeiros que chegassem ao gabinete. O atendimento iniciava-se às 14h, mas a fila se formava às 9h, e ninguém poderia se ausentar, nem para ir ao banheiro, sob pena de perder a vez, e a oportunidade. Além de todo o trabalho técnico/logístico necessário se fazia uma preparação do esfíncter. Mas a entrega do memorial só faria sentido se o processo já estivesse pautado, eis que entregar memoriais para processos ainda não preparados era perda de tempo posto que julgador tinha milhares de recursos para análise. Infelizmente o processo ficava na fila da conclusão por anos a fio sem nenhuma perspectiva de ser pautado. Não poucas vezes o recurso era repentinamente pautado para a semana seguinte depois de 5 anos hibernando no aconchego do gabinete. Neste momento, a menos de uma semana da sessão de julgamento, não havia mais agenda com o julgador para despacho de memorial, a passagem já estava na sua faixa mais cara e nem mais se lembrava do caso. Já houve situações em que o profissional era pego de surpresa não com a pauta mas com o julgamento monocrático do recurso. Ou seja, aquele recurso especial, admitido com muito suor na origem, que deveria ser julgado pelo colegiado e pautado com antecedência, era pego de surpresa com o julgamento singular do recurso, uma verdadeira subversão do sistema processual local. E assim o profissional se via manco, sem poder passar as minúcias do caso para cada um dos membros da turma julgadora, e sem poder fazer o uso da palavra na tribuna, direito que lhe assegurava a constituição daquele país. Diz a lenda que houve a edição de uma emenda regimental daquele tribunal dando ao profissional o prazo de apenas dois dias a contar da publicação da pauta para ele se inscrever para sustentação oral. Ou seja, bobeou dançou. E não dava nem tempo de negociar honorários adicionais com o cliente. E o tribunal assim agia para pretensamente agilizar os julgamentos e fazer frente a invencível demanda de trabalho, nem que para isso o sistema fosse deturpado e o cidadão prejudicado. Mas pelo menos as estatísticas correspondiam ao que exigia uma tal confederação nacional da justiça, órgão externo que fiscalizava o poder judiciário daquele país. E o profissional com capacidade postulatória, que tanto trabalhou naquela causa com o objetivo de fazer valer o direito do seu constituinte via o seu trabalho ir por água abaixo em nome da celeridade e da produtividade dos outros. Nada poderia ser feito. E se o profissional se insurgisse com outro recurso, ainda que previsto no ordenamento jurídico visando a colegialidade da decisão, era apenado com multa por protelar o andamento do processo. Ainda bem que esse país não é o Brasil. Que sorte a nossa.

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