Na última semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento daquilo que a doutrina e a jurisprudência passaram a nominar como “direito ao esquecimento”. Esse termo, em suma, seria o direito que uma pessoa tem de impedir que dados e/ou fatos, relacionados a si, continuem sendo perpetuados no tempo; ou seja, a divulgação desses dados e/ou fatos dependeria de sua expressa autorização, sob pena de se violar o seu direito constitucional à intimidade, vida privada e honra.

Para que possamos entender melhor a discussão travada e concluída pelo Supremo, importante destacarmos que o caso em julgamento girava em torno de um episódio do programa televisivo nominado de “Linha Direta Justiça”. Referido episódio fora produzido e exibido pela TV Globo no ano 2004, e abordava – incluindo dramatizações – o “caso Aída Cury”. Em 1958, a jovem Aída, então com 18 (dezoito) anos de idade, foi atacada, violentada e assassinada por três homens, no Rio de Janeiro/RJ, sendo em seguida atirada da janela de um edifício. O crime gerou uma imensa mobilização da imprensa, tendo uma grande cobertura do fato à época.

Os irmãos da vítima ingressaram com uma ação na Justiça Estadual do Rio Janeiro contra a Rede Globo de Televisão, buscando uma indenização por danos morais e materiais e pelo uso indevido de imagem. Justificaram que a reconstituição dos fatos ocorridos com sua irmã, por meio de dramatizações, ocorreu contra a vontade manifesta da família de não ter o programa veiculado, tendo sido feito de maneira degradante, com finalidade essencialmente lucrativa por parte da emissora, reacendendo nos familiares, após décadas da ocorrência do crime, os sentimentos de angústia e dor que o tempo havia amenizado.

O STF, após longa discussão a respeito, negou a indenização e firmou a seguinte tese de repercussão geral:

“É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social – analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral, e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”1.

Para um leigo, ou mesmo um versado despercebido, poderia surgir a ideia, após uma leitura rápida da tese firmada, que situações semelhantes relacionadas ao “direito do esquecimento” estão resolvidas, e que a partir de agora todos os Tribunais devem entender que a liberdade de expressão é absoluta.

Ledo engano!

Conforme bem destacado ao final da tese proclamada pelo STF, “Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais […]” (destaques nossos). Assim, de forma alguma nosso Tribunal maior permitiu ser o direito de expressão absoluto, sendo certo que ele deve sempre respeitar outros direitos constitucionais, em especial o direito à intimidade, vida privada e honra; e, ainda, outros direitos já descritos na jurisprudência comparada, tais como o direito à felicidade, bem-estar, ressocialização, entre outros.

Para melhor entendermos e fazermos um melhor contraponto, a seguir passarei a destacar outros casos famosos que fomentaram a ideia do “direito ao esquecimento” ao redor do mundo, e que tiveram desfechos diferentes ao caso julgado pela nossa Suprema Corte de Justiça.

No Direito alemão, é célebre o “caso Lebach” (1969); isto porque:

“Um dos assassinos de quatro soldados do Exército da República Federal da Alemanha, proximamente à sua libertação, ingressou com uma ação para impedir a difusão de um documentário sobre o crime. Após derrotas sucessivas nas instâncias ordinárias, obteve a proteção requerida no Tribunal Constitucional Federal”.2

Inobstante o grande apelo do caso (crime de latrocínio) e da intensa cobertura pela imprensa, a Corte Constitucional Alemã – de modo diverso das instâncias que lhe antecederam –, entendeu que:

“Do embate entre a proteção da personalidade e a liberdade de informar por meio de radiodifusão, ainda que este direito tenha uma precedência geral no que tange à informação sobre atos criminosos, na hipótese, deveria prevalecer a proteção da personalidade e a consequente proibição de exibição do documentário, já que não mais havia interesse atual na retomada do assunto e por afetar à ressocialização do autor”.3

Neste caso apenas é importante destacar que, embora o Requerente tenha assegurado o direito de não exibição do documentário, o fez não propriamente se fundamentando no “direito ao esquecimento”, mas sim no direito à proteção de sua personalidade (dignidade), ante a ausência de contemporaneidade do fato, ausência de interesse social no reavivamento da questão, e necessidade de sua ressocialização.

Outro caso de destaque aconteceu nos Estados Unidos e ficou conhecido como “Red Kimono” (1931). Nesse caso a Corte da Califórnia reconheceu o direito à privacidade à Autora do processo – Gabrielle Darley Melvin, ex-prostituta –, e condenou a produtora do filme “The Red Kimono” a pagar indenização pecuniária a ela por ter exposto sua vida pregressa (particularmente o fato de ter ela sido processada e absolvida por um crime de homicídio). Referida Corte se fundamentou na interpretação do art. 1º da Constituição do Estado, que assegura o direito fundamental à persecução da felicidade, de modo que seria garantida à autora, já “reabilitada”, a não intrusão em sua vida e o não ferimento de sua reputação, com proteção ao seu nome e à sua imagem. A seguir trecho do julgamento:

“Oito anos antes da produção de “The Red Kimono”, a recorrente abandonou a sua vida de vergonha, reabilitou-se e assumiu o seu lugar como membro respeitado e honrado da sociedade.

Tendo ocorrido essa mudança em sua vida, ela deveria ter tido permissão para continuar seu curso sem ter sua reputação e posição social destruídas pela publicação da história de sua antiga depravação, sem outra desculpa senão a expectativa de ganho privado pelos editores.

Um dos principais objetivos da sociedade, tal como está agora constituída … é a reabilitação dos caídos e a reforma do criminoso. … Onde uma pessoa por seus próprios esforços se reabilitou, nós, como membros da sociedade que pensam corretamente, devemos permitir que ela continue no caminho da retidão ao invés de jogá-la de volta em uma vida de vergonha ou crime”.4

Através das histórias destacadas, é perceptível que, embora o direito à liberdade de expressão tenha sido privilegiado no caso específico julgado na semana passada pelo STF, precisamos ter todos nós em mente, haja vista nosso crescente engajamento nas mais diversas redes sociais, que essa liberdade de expressão é limitada e relativizada quando não coadunada com outros preceitos constitucionais.

Sem dúvida, o fato de vivermos em uma país de curta memória, e cuja população atualmente carece de exemplos em quem se espelhar, influenciou e muito na conclusão a que nossos ministros da Suprema Corte chegaram. Nesse ponto, destaque-se o que afirmou a Ilustre Ministra Cármen Lúcia:

A minha geração lutou pelo direito de lembrar. A gente luta no Brasil pelo direito de lembrar, até pra esquecer, para refazer a história, para não repetir o que tenha sido cruel, desventuroso, humanamente improprio”.

O certo de tudo isso é que vivemos em sociedade e estamos em constante evolução. O julgamento do STF faz parte dessa evolução, e talvez daqui a algum tempo precise ser revisto. Quiçá seja demais – ou mesmo inocente – esta utópica pessoa que lhes escreve acreditar que um dia o ser humano terá evoluído tanto a ponto de o bem comum ter sido atingido de forma tão eficaz que o bem individual passe a ser privilegiado. Nesse dia, talvez, possam fazer sentido as palavras do filósofo e jurista François Ost (2005): “Temos o direito, depois de determinado tempo, de sermos deixados em paz e a recair no esquecimento e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído”.

  1. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=460414&ori=1. Acesso em 12/02/2021.
  2. RODRIGUES JR. Otavio Luiz. Não há tendências na proteção do direito ao esquecimento. Disponível em https://www.conjur.com.br/2013-dez-25/direito-comparadonao-tendencias-protecao-direito-esquecimento. Acesso em 27/9/20).
  3. MARTINS NETO, João dos Passos; PINHEIRO, Denise, 6 Em revisão RE 1010606 / RJ Liberdade de Informar e Direito à Memória – Uma crítica à ideia do direito ao esquecimento. Disponível em https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/download/ 6670/3805. Acesso em 09/10/20).
  4. Disponível em https://casetext.com/case/melvin-v-reid. Acesso em 1/2/21. Tradução livre.
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