O diploma civilista brasileiro traz a marca da teoria do tridimensionalismo e do culturalismo jurídico de Miguel Reale, cuja obra é o principal marco da produção científica brasileira no contraponto ao domínio do positivismo, característica do Código Civil anterior, como já analisamos.

Miguel Real introduziu a visão culturalista do fenômeno jurídico como forma de rejeitar o positivismo, levando a uma “visão integral do direito, entendido como experiência, e permite uma compreensão mais viva do homem situado em situações concretas, conforme a chamada ética da situação e do mundo por ele construído1”.

O autor do projeto do Código Civil de 2002, na oportunidade do ciclo de palestras proferida pela EMERJ2, culminando no artigo “Visão Geral do Novo Código Civil”, definiu o novo código com a explicação de três princípios fundamentais (princípios informativos) do então novo diploma civil brasileiro: “efetividade ou operabilidade, socialidade e eticidade”3.

Sobre a Efetividade, o autor explica que preceitos abertos assim foram concebidos com a intenção de proporcionar a atividade criativa dos juristas (juízes e advogados), lançando mão das cláusulas gerais verificados na presença de conceitos indeterminados como “boa-fé” (art. 113.4), de modo a atribuírem efetividade ao preceito da lei: “São previstas, em suma, as hipóteses, por assim dizer, de “indeterminação do preceito”, cuja aplicação in concreto caberá ao juiz decidir, em cada caso ocorrente, à luz das circunstâncias ocorrentes (…)5”.

Nesse ponto, consagra o pensamento de autores que rejeitaram o positivismo e defenderam a jurisprudência como ciência normativa, como LARENZ, concluindo Reale que: “Somente assim se realiza o direito em sua concretude, sendo oportuno lembrar que a teoria do Direito Concreto, e não puramente abstrato, encontra apoio de jurisconsultos do porte de Engisch, Betti, Larenz. Esse e muitos outros, implicando maior participação decisória conferida aos magistrados6.

Referente ao princípio da Socialidade, Reale indica que foi constante a preocupação da comissão em afastar o manifesto carácter individualista das normas presentes no Código Civil de 1916 que foram elaboradas em um momento em que a população brasileira era em sua maioria situada na zona rural. Na elaboração do novo diploma civil, a realidade cultural da sociedade brasileira, agora em sua maioria situada na cidade, com acesso amplo a informação, exigiu uma viragem de 180° na forma de pensar, “Daí o predomínio do social sobre o individual”. (Reale, 2003).

Nota-se então, de forma bem delineada, a viragem do paradigma do individualismo, dos contratos indissolúveis, da desproporcional proteção da propriedade privada, para uma exigência de cunho social, atribuindo a devida importância à função social da lei, da propriedade, dos contratos e aos direitos humanos, em consonância (mesmo que tardia) com o estabelecido na Constituição Federal de 1988.

O princípio da Operabilidade consagra a opção de adotar soluções na lei para facilitar a atividade do intérprete e a sua realização pelo aplicador da lei, de forma a privilegiar a tentativa de eliminar as eventuais dúvidas de interpretação muito comuns no Código de Beviláqua.

Além de eliminar as dúvidas entre conceitos legais como prescrição e decadência, enumerando em cláusulas os casos e prazos da prescrição (art. 206, CC 2002) e fazendo conexão imediata dos casos de decadência com o preceito normativo específico, Reale aqui também destaca a importância da adoção das cláusulas gerais para o objetivo de se atingir a concreção do direito: “Não menos relevante é a resolução de lançar mão, sempre que necessário, de cláusulas gerais, como acontece nos casos em que se exige probidade, boa-fé ou correção (corretezza) por parte do titular do direito, ou quando é impossível determinar com precisão o alcance da regra jurídica”.

Em termos gerais, o Código Civil de 2002 traz a marca das diretrizes do pensamento de Miguel Reale, que defende a unidade no processo hermenêutico como um ato interpretativo e de natureza axiológica em que se busca uma aplicação de valores das normas; o ato interpretativo com natureza íntegra, ou seja, num contexto global. Concebe a interpretação com limites objetivos, de modo a não extrapolar os modelos jurídicos positivos, sendo o ato interpretativo dotado de distinções éticas, ou seja, devendo prevalecer a interpretação mais condizente com os valores éticos da pessoa e da convivência social.

O Código Civil de Reale apresenta-se como uma oposição robusta à ideia do monismo jurídico do Código de Beviláqua (onde o Estado se apresentava como única fonte da produção jurídica, rejeitando o monopólio estatal de produção de leis), ao defender o pluralismo das fontes do direito, atribuindo mais importância aos princípios jurídicos e cláusulas gerais (generalidade das regras jurídicas), em um verdadeiro contraponto aos esquemas jurídicos do paradigma racional sistemático da modernidade.

Realmente, Miguel Reale não foi nada positivo! Ainda bem!

O nosso antigo Código Civil, aquele de 1916, do qual pouquíssimos operadores do direito tiveram a oportunidade de trabalhar – e esperamos que a ausência de saudade seja unanimidade -, foi marcado pela racionalização do pensamento e da cultura, na crença no primado da lei (a lei como fonte suprema do direito). Nessas são inegáveis as características do individualismo, do patrimonialismo e patriarcalismo, sendo essas características objetos de críticas – ainda hoje – por se afastarem demasiado do carácter social (ausência de textos que abordassem leis trabalhistas) e pelos privilégios atribuídos à autonomia privada7.

Segundo Francisco do Amaral, ao fazer menção a ZACCARIA, toda essa mudança paradigmática do diploma de 1916 para o nosso atual de 2002, representou um novo modelo de interpretação, no qual “interpretar não é apenas compreender um direito pressuposto como objetivo, mas sim elaborar soluções decisórias para casos jurídicos concretos, com eventual suporte em princípios jurídicos, cujo primado aumenta a importância do raciocínio jurídico e da sua revisão, não mais se admitindo o processo de aplicação dirigido pela lógica deôntica (SERNA, 20023, p.5).”8

Essa transição de modelos de interpretação acaba por viabilizar de maneira mais contundente a viragem metodológica no direito brasileiro, que passa de um paradigma da aplicação da lei presa aos limites gramaticais, para o paradigma da construção jurisprudencial e da principialização do Direito Civil.

Verifica-se então uma viragem metodológica muito bem delineada, que abandona o pragmatismo do paradigma da aplicação próprio da escola moderna do direito, do positivismo antes muito utilizado na cultura jurídica brasileira, e passa a adotar o paradigma jurisprudencialista, tendo como coordenadas o problema do caso concreto como ponto de partida, os princípios jurídicos como fundamentos para o pensamento jurídico que, por sua vez, sintetizam o pensamento da decisão, sempre em busca da realização da justiça.

Entretanto, nosso Código Civil precisa ser modernizado em alguns pontos, com extrema urgência. Temas como direito de família e o reconhecimento da união homoafetiva como autêntica unidade familiar, alteração do registro civil com o fito de reconhecer a identidade de gênero como uma forma de livre expressão da personalidade – sem a necessidade de cirurgias de transgenitalização, a regularização que urge sobre o direito ao esquecimento e a atualização sobre a inconstitucionalidade de distinção de direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros (art. 1790), são alguns dos desafios a se enfrentar.

“Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”… Os desafios do Código Civil são grandiosos. Nada mal para um jovem de apenas de 20 anos – completos no dia 10 de janeiro de 2022-, não acha?

  1. ANDRADE, Christiano José de. “Hermenêutica jurídica no Brasil.”, Ed. Revistas dos Tribunais, São Paulo, 1991. P.97, apud AMARAL, Francisco, “O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma judicativo-decisório.”, Revista do Direito Privado da UEL, Volume I – Número 1, disponível em www.uel.br/revistas/direitoprivado.
  2. Palestra proferida no dia 11/06/2002, no Seminário “O Novo Código Civil e as Recentes Reformas no CPC” organizado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ.
  3. REALE, Miguel, “Visão Geral do Novo Código Civil”, Número Especial 2003. Anais dos Seminários EMERJ Debate o Novo Código Civil, parte I, fevereiro a junho 2002, Revista da EMERJ, Rio de Janeiro 2003, consulta realizada em 20/08/2020, às 10:48, disponível “on line” em https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/anais_onovocodigocivil/anais_especial_1/anais_especial1_sumario.htm, p. 40
  4. Código Civil 2002 – “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”
  5. Ibid. REALE, p.42
  6. Id. P.42
  7. AMARAL, Francisco, “O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma judicativo-decisório.”, Revista do Direito Privado da UEL, Volume I – Número 1, disponível em www.uel.br/revistas/direitoprivado.
  8. AMARAL, Francisco, “O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma judicativo-decisório.”, Revista do Direito Privado da UEL, Volume I – Número 1, disponível em www.uel.br/revistas/direitoprivado.
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