O caso em que a MP 948/2020 não foi aplicada, e uma reflexão sobre as relações de consumo diante da nova realidade.

Que os últimos meses têm sido extremamente atípicos e desafiadores em razão do Coronavírus, não é segredo para ninguém. Muitos sonhos foram adiados, ou ao menos “pausados”, enquanto traçamos novas perspectivas de futuro.

Diante das diversas restrições causadas pela pandemia, a realidade dos contratos é devastadora1, sendo certo que num primeiro momento a crise foi fortemente sentida no setor de transporte aéreo e hotelaria, mas os impactos são visíveis em toda a cadeia de fornecimento e consumo.

Já pensou ter guardado aquele “dinheirinho suado”, feito diversos investimentos e traçado vários planos, e não saber o que fazer pela simples impossibilidade de prestar um serviço, ou usufruir dele?

Neste sentido, a 3ª Vara Cível Central da Capital de São Paulo2 entendeu que, em determinados casos, não se trata de mero “cancelamento” (que seria uma resilição unilateral), mas sim uma impossibilidade de prestação, por força maior, sem que nenhuma das partes tenha concorrido para o evento com culpa, de modo que não se aplicam as políticas de cancelamento das empresas.

Com isso, condenou um hotel a restituir integralmente o valor pago por reservas de um casal. Eles, que tinham festa de casamento marcada para maio, diante da pandemia, tiveram que cancelar a festa e, pelo mesmo motivo, ficaram impossibilitados também de viajar, pedindo restituição dos valores pagos.

O hotel tentou valer-se da Medida Provisória nº 948, de 8 de abril de 2020, que dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do Coronavírus, e ofereceu um voucher para o casal remarcar a viagem. Todavia, o Juiz entendeu que esta MP não se aplica ao caso em tela, vez que foi editada após o pedido de restituição dos Autores e, portanto, aplicá-la seria uma ofensa ao “ato jurídico perfeito”.

Aqui, cabe destacar que, segundo a MP mencionada, empresas de turismo e eventos não são obrigadas a restituir os valores pagos a título de reembolso se os eventos marcados no período da pandemia forem adiados. Como, no caso trazido à baila, o casal realizou o pedido de reembolso antes da MP entrar em vigor, a ação deles foi julgada procedente, de modo que os valores não serão somente restituídos, como também sobre eles incidirá correção monetária e juros de mora de 1% ao mês. Ainda cabe recurso da decisão.

Todavia, é extremamente relevante observarmos como os parâmetros das relações de consumo dentro desta nova realidade ainda estão sendo traçados. Estamos vivendo um momento único da história, e por consequência, no Direito. Existem sempre “os dois lados da moeda” (neste caso, fornecedor e consumidor), que precisam ser considerados para não se beneficiar um lado em detrimento do outro.

Todavia, no caso do Brasil (ou melhor, dos brasileiros), a situação precisa ser analisada sob uma ótica pertinente e adequada à sua realidade, inclusive do ponto de vista consumerista.

Apesar de no caso retratado acima não estarmos falando em inadimplemento, em virtude dos diversos cancelamentos e impossibilidade de prestação de serviços em geral, a economia sofre e reflete isso tanto no consumidor como no fornecedor.

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) divulgou em 2018 (ou seja, muito antes da pandemia causada pelo Coronavírus) reportagem3 divulgando que quase 30 milhões de brasileiros (quase 15% da população) não possuíam condições financeiras de pagar suas próprias contas, criando uma verdadeira “bola de neve” financeira. A situação, infelizmente, não melhorou de 2 anos para cá.

E não são somente os consumidores estão em apuros. Em maio deste ano, Waldery Rodrigues, que representou o Ministério da Economia em audiência pública, disse que “Hoje, existem cerca de 220 empresas em estado falimentar. (…) Existem 7,2 mil ou 7 mil e poucas empresas em recuperação judicial, que remontam um total de crédito ligado a elas de R$ 285 bilhões“.

A maior fragilidade, com menor liberdade, de ambos os lados, é inegável. Apesar de possuirmos o Código de Defesa do Consumidor, o espaço para diálogo e ponderação sobre novos caminhos está sendo aberto.

Medidas provisórias, como a mencionada acima, além de diversos projetos de lei (como o PL 1.397/2020, que sintetizei em meu último artigo4 no Blog AHO), têm sido elaborados para resguardarem a população e empresas diante de um momento em que o que é “certo” está sendo reescrito.

É necessário pensar de forma estratégica sobre todas essas mudanças, não apenas de Direito, mas também comportamentais. Sem dúvida tudo isso faz parte e contribui para um processo natural de nosso amadurecimento social, inclusive como consumidores e fornecedores. Que possamos utilizar este processo de transformação com “cautela”, permanecendo atentos e buscando nos preparar da melhor forma para o que está por vir!

  1. Segundo Dr. João Pedero Biazi para o jornal Estadão , advogado e mestre em direito Civil pela USP- link: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,com-restricoes-causadas-pelo-coronavirus-consumidor-pode-pedir-cancelamento-de-servicos-sem-onus,70003246806
  2. Processo nº 1030893-50.2020.8.26.0100
  3. https://idec.org.br/idec-na-imprensa/superendividados-30-milhoes-ja-nao-podem-mais-pagar-suas-dividas – acesso em agosto de 2020
  4. COVID-19 – “Meu negócio foi abalado pela crise econômica decorrente da pandemia. Será meu fim?” – Uma síntese do PL 1.397/2020 – no link https://aho.adv.br/blog/artigos/covid-19-meu-negocio-foi-abalado-pela-crise-economica-decorrente-da-pandemia-sera-meu-fim/#.X0elXMhKjcs
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